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CORONAVÍRUS: 'É triste a missão da escolha final para uma vaga de UTI'

25.4.20

/ por casinhas agreste
Diário de PE

Ele lida com a morte todos os dias. Médico e chefe de plantão do Pronto Socorro Cardiológico Universitário de Pernambuco (Procape-UPE), Giovandro Targino Freire cuida hoje de pacientes graves com cardiopatias em UTIs, com complicações por terem contraído o novo coronavírus. Formado pela Universidade Federal de Pernambuco, soma 20 anos de experiência. Neste depoimente para a série #nalinhadefrente, o cardiologista fala de difícil escolha sobre quem vai ocupar umas das escassas vagas de UTI, narra a dor que o médico sente e não compartilha, o choque ao ver uma enfermeira da sua própria equipe entubada. E conta sobre seu silêncio a respeito de sua rotina para poupar os filhos pequenos. 

“Na última segunda-feira, tive uma das piores experiências nessa pandemia. Ao chegar para dar o plantão noturno, lá estava entubada e respirando por ventilador mecânico uma enfermeira muito querida por todos nós, uma guerreira, conhecida por seu ímpeto em deixar tudo organizado no plantão da emergência cardiológica, a mesma que até uma semana atrás, estava no combate a esta terrível doença, com a dedicação que lhe era peculiar. Infelizmente, adoeceu e evoluiu com quadro mais grave. Fiquei sem chão e rezo todos os dias por ela. Espero que volte logo a nos fazer companhia. Será mais uma vitória para todos nós. Esse é um aspecto muito duro dessa pandemia: ela avança e vai tirando os seus pares do combate. Já tenho vários amigos doentes em suas casas e outros internados. Como chefe de plantão, sou um dos primeiros a ouvir dos mesmos que terei desfalque, que estão doentes e não poderão trabalhar por ora. Trabalho hoje em uma UTI exclusiva para pacientes, até onde se sabe, a de maior risco de morte: a dos cardiopatas com Covid-19, que são internados em estado grave e crítico pela natureza da famigerada associação de doenças. Eu e meus colegas estamos numa verdadeira luta pela vida. O cenário é caótico, mas sinto que estamos crescendo no combate a cada dia, uma vez que, na medicina, quanto mais desesperadora a situação, mais nos sentimos necessários e não há sensação melhor que a de salvar uma vida ou, ao menos, aliviar a dor de alguém, mas a nossa também é imensa. E essa não podemos compartilhar; é só nossa.

Tenho observado que tem sido muito presente a falta de leitos no sistema público de saúde, principalmente os leitos de UTI. Na nossa rotina sempre pautamos as terríveis escolhas de quem será um candidato a ocupar as vagas escassas que vão surgindo, em critérios técnicos que levam em conta o prognóstico dos doentes, critérios de fragilidade, escores de falências orgânicas múltiplas, idade, etc, e isso, embora necessário e feito com humanidade, sempre me causou imenso sofrimento. Agora com a grande proporção de doentes graves pela Covid, bem como pela insuficiência de leitos nunca antes presenciada por mim, terei de assumir essa ingrata escolha com a frequência nunca antes vista. Mas é fato que sou apenas o último na problemática que começa muito antes do doente chegar ao hospital. Essa escolha é feita pelo médico, mas não imposta pelo médico, embora seja nele que recai a responsabilidade. A carga emocional é gigantesca.

Lembro de alguns episódios onde o colega da emergência me chamou para avaliar quem vai subir da sala vermelha (espécie de UTI improvisada) para a nossa UTI que acabara de vagar um leito. Você olha para os pacientes e se vê na triste missão da escolha final, embora técnica, de quem terá mais chance de sobreviver. A Covid 19 veio para nos levar ao extremo dessas situações, por isso é tão urgente achatar a curva de propagação da doença.

IMPACTO
Essa pandemia transformou a rotina de todos os profissionais de saúde que estão no front. Sentimentos de isolamento, medo, angústia eimpotência têm nos af ligido. É realmente estranho você tratar de alguém que, potencialmente, pode transmitir uma doença e causar-lhe a própria morte ou a de seus familiares. Penso que pior do que adoecer é quando você contrai a doença e contamina a família que está em sua casa rezando para tudo dar certo com você. São vários os exemplos de maridos e esposas de colegas adoecendo juntos, com pelo menos um deles não evoluindo tão bem como se gostaria.

Estou trabalhando em ambiente exclusivo, a chamada “área quente” de doentes com suspeita ou confirmação da doença. O Procape, muito bem gerido e com uma equipe de profissionais que me dá imenso orgulho de participar, bem antes da situação piorar, mudou

toda a sua dinâmica, remanejou enfermarias completas, modificou o ambiente da emergência, ficou parecendo realmente um campo de batalha e pronto para o pior, mas tudo isso resultou num inevitável isolamento. Não há mais espaço para conversar com colegas de outros setores nos plantões, para discutir situações clínicas de maior gravidade. É você e o paciente na tomada de decisões e elas são muitas e imediatas, pois a evolução dos casos mais graves é muito lábil e imprevisível, são muitos ajustes para manter a normalidade respiratória, metabólica e hemodinâmica destes pacientes e essa vigilância com atitude faz a diferença entre a vida e morte em muitos casos. Outra fonte de angústia é não poder examiná-los mostrando-lhe o rosto.

Há outras situações que vão se tornando reveladoras neste estado caótico. Percebo uma solidariedade e força de trabalho exuberantes entre os colegas. Estamos muito empenhados nessa luta, parece que a necessidade de sono diminuiu e que só importa agora aprender mais e mais sobre a doença e ajudar aos pacientes e a nós mesmos a superar essa fase. O corpo de saúde tem funcionado como um único organismo, extremamente empático. Para exem lificar, a nossa escala de plantão já tem diversas

ausências por médicos acometidos da Covid. Sábado passado estaríamos apenas com dois plantonistas na emergência, número este que em épocas de normalidade já seria impraticável pela alta complexidade dos doentes cardiopatas que atendemos, e aí, de forma voluntária, eu e mais três médicos (um deles o próprio diretor clínico do Procape) fomos para o reforço do plantão. Creio que. ao final, o recado que ficou implícito foi que ninguém ficará desamparado, nem médicos nem pacientes, se depender de nós. Não é fácil voltar para casa e contar como foi o seu dia. Melhor deixar esse assunto para você e o travesseiro. Com filhos pequenos em sua casa, não se pode mostrar a própria fragilidade. Os pequenos não entendem. Aí vem o compromisso de, apesar de tudo, brincar com as crianças, fazer o possível para não piorar as coisas. Uma tarefa emocionalmente difícil.

ADVERSIDADES
Morei até os 17 anos em uma pequena cidade no interior de Pernambuco, chamada Camutanga. Concluí os estudos fundamental e médio lá mesmo, em escola pública, e vim em busca do sonho de me tornar médico em 1994, num esforço hercúleo dos meus pais, assalariados, como a maior parte dos brasileiros. O que parecia uma injustiça para mim àquela época, hoje se mostra como uma prova de que é na adversidade que costumamos crescer. Aí se encontra explicação para a nossa resposta à pandemia.

Aprendi que não cabe vaidade na medicina nem na vida, que a tônica de um bom médico deve ser sempre o desejo de estudar, de aprender e se adaptar, para cuidar do próximo da melhor forma possível e que a resiliência dos médicos anônimos são a grande força motriz e salvadora de vidas nos diversos serviços de urgência e emergência deste país, notadamente no serviço público, historicamente relegado a segundo plano pelos políticos. Com essa pandemia e com tudo que ela representa para as pessoas, agradeço imensamente ser médico e poder contribuir com meu esforço e dedicação no serviço público. Espero que consigamos superar tudo isso com o menor número de mortes possível e não mediremos esforços para tal, lutando contra todas as adversidades como somos acostumados no setor público de saúde.

O que tenho a dizer a população é: cuidem bem dos seus familiares e amigos. Quem puder, ajude os desconhecidos nas suas necessidades, pois omomentoéde solidariedade. Deixemos de lado as coisas sem importância, as diferenças bobas, as intrigas, as divergências políticas. Estamos todos num único barco e, se Deus quiser, iremos superar tudo isso e o mundo passará a enxergar a vida e as relações humanas neste planeta com outros olhos, bem mais racional que de costume.”

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