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SEIS ANOS DE SECA: A humilhação de mendigar por água

1.12.16

/ por casinhas agreste


– O que é mais difícil? Dormir com fome ou com sede? – Com sede é muito pior. A gente tá com fome, se deita, dorme pouco, mas dorme. Com sede, não dá. Ou eu bebo água, ou endoideço.

Diante do absurdo, Marlene responde resignada, mas firme. Ela bem sabe. É possível ter ainda menos, mesmo na ausência de tudo. Na casa onde mora, não há geladeira nem fogão. Quase não se vê comida. Mas, principalmente, não há água. O pouco que tem é esverdeada, cheiro forte, mais lama do que vida. Todos os dias, Marlene da Silva dos Santos, 48 anos, e a filha adolescente Roseane vão catar uns baldes num barreiro que nem os bichos querem mais. O mesmo reservatório que, em 2015, o Jornal do Commercio fotografou, já sujo, na periferia de Pedra, Agreste do Estado. Na época, era humilhante ver homem e bicho relegados à mesma sorte. A estiagem prolongada imprimiu à triste sina condição ainda mais desumana. Marlene e sua prole usam a lama (quem nem os bichos querem mais) para lavar prato e tomar banho. De que importa se a pele fica cinzenta ou os pratos cheiram mal? Escolher não é opção. É isso ou nada.

Marlene já se viu muitas vezes sem arroz nem fubá no armário. Continuou sem, para poder comprar água de beber. Os R$ 575 do Bolsa Família (única renda da casa) sempre acabam antes do final do mês. “Mas eu tô com fome”, dizem filhos e netos. “Um prato de comida, você vai na casa de um parente e come. Água é mais vergonhoso pedir. E toda hora eles estão com sede. São crianças, né?”, justifica a mãe-avó. Ela mora na área mais pobre de Pedra, num bairro conhecido como Olaria. Colocaram uma caixa-d’água para socorrer os moradores, só que o reservatório vive mais vazio do que cheio. “A água que a gente pega lá é quase nada. O que ainda salva é o barreiro sujo”, diz, num agradecimento envergonhado.


Até onde uma mãe suporta ver o filho com sede? A disputa diária por água produz imagens e relatos duros.

– Eu estava com um copo na mão, aí ele mandou eu deixar de beber e dá para ele. Eu dei e fiquei com sede.

Josefa Edilza da Silva, 19, conta, rosto lavado pelas lágrimas, o diálogo mínimo, quase gestual, travado com o filho. Na casa onde mora, no município de Jataúba, os adultos precisam abrir mão da água de beber e de tomar banho em favor das crianças. Não um episódio isolado, mas fato cotidiano. Dezenove bocas para matar a sede. Muitas mulheres, uma dezena de crianças, quase nenhum homem. Socorridos da fome pelo Bolsa Família, nem sempre sobram os 40 centavos para comprar o latão da “água boa”, aquele do chafariz “que dá para beber”. No dia em que a reportagem visitou a família, no mês passado, não havia dinheiro e só restava um pouco de água nos potes, para mais dois dias. “E quando acabar?”. “Tem que esperar o Bolsa entrar. Até lá, não sei.” Josefa vive de indefinição.

Mergulhar no Agreste seco e subjugado ao carro-pipa é se deparar com um regime de exceção, em que a escassez é ainda mais desigual com os que nada (ou quase nada) têm. São os que mais sofrem, porque já sofriam antes. É humilhante ter dinheiro para comprar água e nem assim ter onde encontrá-la. Com os reservatórios da região quase todos secos, é preciso buscá-la cada dia mais longe e a um custo cada vez mais alto. Mas é ainda mais humilhante ter que mendigar por ela.

mulheres levam nos carros de mão seus reservatórios de água
Moradores de Vertentes madrugam na fila para conseguir água
Luís Carlos olha a água da cacimba
O agricultor Luís Carlos é salvo pela água da cacimba, na área rural de Jataúba
Jataúba, a cidade onde Josefa mora com a família, não vê água nas torneiras há mais de quatro anos. Em toda a área urbana, só existem dois chafarizes para atender à população. O da “água boa” (40 centavos, a lata) e o de “água ruim”. Apesar de a cidade estar no cronograma de distribuição da Compesa, moradores afirmam que, há seis meses, os carros-pipas contratados pela empresa pararam de abastecer o município e agora é “salve-se quem puder pagar”. O motorista Joseilson Alves de Melo diz que a completa dependência da população recrudesceu na cidade uma antiga conhecida dos nordestinos: a indústria da seca. “É a velha humilhação por uma lata d’água. Se resolver o problema do abastecimento, o cidadão pobre e sofrido deixa de ser refém dos que têm o poder de escolher aonde o carro-pipa vai levar água”, critica. Para ele, a seca resiste, não por força da natureza, mas por vontade política (ou pela ausência dela). “No Nordeste, temos água. O que falta é justiça.”

DESALENTO E SOFRIDÃO

Nos 2.400 quilômetros Agreste adentro percorridos pela reportagem, durante duas semanas na estrada, o desalento foi ponto de chegada e de partida. Na memória de moradores velhos e novos, seca já houve muitas. Nenhuma tão arrastada e inclemente quanto a de agora. Das 71 cidades da região, apenas duas não decretaram estado de emergência. A mancha dos municípios hoje em colapso (onde o abastecimento foi completamente interrompido) é praticamente toda no Agreste. São 28 cidades nas mãos do carro-pipa. Vinte e cinco só na região. Quando se soma a legião de moradores que vivem nos municípios em pré-colapso (com severo esquema de racionamento), a estiagem afeta quase um milhão de pessoas nesse pedaço do Estado.

Marlene, a mãe-avó de Pedra, diz que o Agreste, para ela, virou Sertão. “A gente olha e só vê mato seco. Não tem uma trovoada no céu. Pra mim, aqui tá pior do que lá”, sentencia, coberta de razão. Cinco anos consecutivos de seca mexeram com muitos imaginários. Aproximaram realidades que, até então, pareciam distintas. Lá atrás era o morador da zona rural que personificava o sofrimento causado pela seca. O homem do campo, com suas lavouras destruídas e o gado dizimado, era o mais sofredor. Era. As barragens esturricadas deixaram de alimentar as torneiras das casas na área urbana da cidade e transformaram o abastecimento humano num drama sem hora para findar.

Na jornada pelos caminhos do Semiárido, fomos encontrar renascimento onde menos se esperava. Na área rural de Jataúba, uma das cidades mais castigadas pela estiagem, por pouco não presenciamos o nascimento de mais um cabrito na fazenda de seu Antônio João da Silva, 52. Lá também não tem água. Quando junta um balde, os bichos vão para cima como se fosse o último. Mas tem esperança. “É difícil o cabra ver uma coisinha dessa nascer e não acreditar que tudo vai melhorar. Tem como desprezar? Tem não. E olha como nasceu bonito, alvinho”, diz seu Antônio, ainda sem saber o nome que ia dar para o novo rebento. Num Agreste seco, que cheira à morte, esquecimento e humilhação, um sopro de vida será sempre um alento.



E O MAR VIROU SERTÃO

A cena é impensável. Paredão gigante ao fundo, é possível caminhar entre as ruínas da cocheira, do barracão, do curral e da casa-grande da antiga fazenda que desapareceu na década 1990, engolida pelas águas que dariam vida à Barragem de Jucazinho. Se uma imagem pudesse sintetizar a dimensão literal de cinco anos de seca em Pernambuco, essa seria precisa. A estiagem abriu um enorme clarão onde antes era uma imensidão de água, um mar doce que irrigava as torneiras de 15 cidades do Agreste. Pela primeira vez, desde que o reservatório foi inaugurado, em 1998, na cidade de Surubim, tudo isso deixou de existir. Simplesmente secou. Andar no fundo esturricado da barragem chega a ser angustiante. As rachaduras no solo, sempre tão icônicas da seca, ganham aqui uma textura diferente. Parecem pequenos cânions de tão profundas.

Seu Carlos custa a acreditar. Nascido e criado nas terras inundadas por Jucazinho, trabalhou na fazenda em que a seca fez emergir as ruínas. Nunca, nos seus quase 50 anos de vida, imaginou que poderia voltar a ver as terras de sua infância. Da casa onde se criou, na outra ponta da barragem, só restou a base. Não é possível atravessar até a antiga casa de seu Carlos porque na área central as partes de lama ainda não estão completamente secas e se transformam numa espécie de areia movediça. “Se a senhora for ali, afunda”, alerta Carlos Roberto Rocha de Lima, 49, ajudante de eletricista e que também ganha um trocado tomando conta da barragem que tomou o lugar de sua casa. “Aqui era o barreirão onde a gente armazenava água para o gado. Ali era o mercadinho onde os trabalhadores compravam alimentos.” Aqui, ali, a memória vai se reconstruindo aos pedaços nas palavras do antigo morador.

Barco sobre o chão rachado da Barragem de Jucazinho
Barragem de Jucazinho secou completamente. Só restou um fiapo de água
O cenário impressiona até quem já está acostumado a lidar com as altas e as baixas da régua que mede o sobe e desce das barragens. Marconi de Azevedo, diretor regional do Interior da Compesa, diz que a situação inédita não encontra paralelo na história das estiagens em Pernambuco nas últimas décadas. “É a pior dos últimos 60 anos e a mais grave que a Compesa já enfrentou desde a sua criação”, atesta. São 327 milhões de metros cúbicos de água que sumiram. O colapso total de Jucazinho, em setembro deste ano, deixou sem abastecimento 800 mil pessoas. O baque não foi de uma vez. Com a estiagem prolongada, o reservatório foi baixando até chegar ao volume morto em novembro do ano passado. Duzentas mil pessoas ainda ficaram dependendo da água que sobrou na barragem. A reserva só durou 10 meses.

O fantasma de Jucazinho, desértico, parece se espalhar, assombrando o pouco que restou de mananciais ainda em atividade no Agreste. Até o carro-pipa, o salvador em tempos de torneiras secas, está sem ter onde buscar socorro. Apenas 8% dos reservatórios localizados na região continuam operando. O preço do caminhão-pipa pulou de R$ 150 para R$ 300. A cada novo dia sem chuva no Agreste, o valor só faz subir. Uma ilusão. Não se paga pelo que não se tem.











"A esperança da gente vem do céu. Se não chover, vamos perder o pouco que ainda resta."

Antônio João da Silva, agricultor

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