O tratamento da Covid com cloroquina é duramente condenado por cientistas e infectologistas. Pesquisas mostram que não há o efeito esperado e os riscos são altos. Mesmo assim, o presidente Bolsonaro e seguidores insistem em contestar as evidências científicas.
A insistência do governo no uso da cloroquina para tratamento da Covid vem desde o início da pandemia. O presidente Bolsonaro fez várias declarações públicas. Em maio do ano passado, a eficácia do remédio já era contestada, mas Bolsonaro insistia: “A cloroquina pode e deve ser usada desde o início apesar de saberem que não tem uma confirmação científica da sua eficácia, mas como estamos numa emergência enquanto não tivermos algo comprovado no mundo temos esse aqui esse pode dar certo e pode não dar certo”.
Em outubro e novembro, o governo gastou mais de R$ 23 milhões em propaganda do tratamento com drogas sem eficácia, de acordo com planilhas obtidas pela TV Globo.
O tema levou à queda de dois ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Só Eduardo Pazuello aceitou publicar no site do Ministério da Saúde, em maio, "orientações para manuseio medicamentoso precoce”, com recomendações para uso da cloroquina e hidroxicloroquina desde o início dos sintomas. A recomendação saiu do ar, segundo o governo, para atualização.
Em janeiro deste ano, pouco antes do colapso da falta de oxigênio no estado, o Ministério da Saúde pressionou a Prefeitura de Manaus para que fosse "difundido e adotado o tratamento precoce de forma a diminuir o número de internamento e óbitos decorrentes da doença". E investiu em um aplicativo – o Tratecov, uma ferramenta que, segundo o ministério, facilitaria o diagnóstico de Covid, mas que, na prática, sempre indicava a cloroquina. O aplicativo saiu do ar e virou alvo da CPI.
Essa postura do governo sempre contrariou as recomendações de entidades médicas e científicas. A Organização Mundial da Saúde também manifestou reiteradamente que não recomenda o uso desses medicamentos.
Nesse cenário, em fevereiro deste ano o governo tentou fazer um ajuste na narrativa. Um documento entregue à CPI da Covid mostra que o Ministério da Saúde alertou os outros ministérios e secretarias que “o uso inadvertido do termo ‘tratamento precoce’ tem sido interpretado não como uma orientação para que os pacientes busquem ajuda médica prévia, mas uma recomendação expressa e obrigatória para uso de medicamentos como ivermectina, azitromicina e, sobretudo, cloroquina - sempre citados como ineficazes para o tratamento da Covid-19”. E pediu que esses órgãos criassem "um novo conceito na linha “vá imediatamente ao médico logo aos primeiros sintomas da Covid-19”, de maneira a reduzir as chances de compreensão causadas pela mistura do termo “atendimento precoce” com o “tratamento precoce”.
Procurar um médico aos primeiros sintomas é a coisa certa a fazer, mas a substituição de palavras não alterou, na prática, a insistência do governo no uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid.
A CPI da Covid investiga os gastos e os esforços públicos com esse medicamento e como isso contribuiu para o fracasso brasileiro no enfrentamento da pandemia. Essa semana, o ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde, Élcio Franco, tentou insistir na troca de palavras e irritou senadores.
Renan Calheiros: Vossa senhoria, defendeu o tratamento precoce?
Élcio Franco: Nossa gestão do Ministério da Saúde defendia o atendimento precoce do paciente.
Renan Calheiros: Com que medicamentos? Cloroquina, ivermectina...
Élcio Franco: Com o medicamento que o médico julgar oportuno, dentro da sua autonomia.
“O presidente Jair Bolsonaro fez a propaganda da hidroxicloroquina e recebeu dos Estados Unidos para o tratamento da Covid. Nós não podemos aceitar esse tipo de declaração mentirosa, reincidente nesta CPI”, disse na quinta, o senador Rogério Carvalho (PT-SE).
Nesta sexta (11), em viagem ao Espírito Santo, o presidente Bolsonaro repetiu a defesa ao medicamento sem eficácia: “Fui acometido do vírus e tomei a hidroxicloroquina. Talvez, eu tenha sido o único chefe de Estado que procurou o remédio pra esse mal. Não vou esmorecer, não sou cabeça dura. Sou perseverante, lutamos pra salvar vidas e enfrentamos os mais variados e cruéis desafios”.
O resultado da insistência do governo em um tratamento que não existe, segundo especialistas, é mais dificuldades no real enfrentamento da pandemia.
“Ele tem um impacto negativo, principalmente na comunicação, na comunicação de risco. Se a população acredita que existe algum medicamento que seja eficaz para Covid-19, ela passa a usar essa medicação e passa a se expor também. Passa a ir trabalhar, pegar transporte público, não utilizar máscara, passa a não evitar aglomerações porque acredita que usando esse tipo de medicação, ela não vai adquirir a doença. Então, realmente é uma política que leva a gente a pensar, que estimula o contato entre as pessoas, estimula a transmissão na ideia da imunidade de rebanho, na imunidade coletiva”, destaca Júlio Croda, infectologista.
O diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia, Estêvão Urbano, considera a postura do governo criminosa: “Utilizar medicamentos ineficazes é o oposto de oferecer uma boa saúde pública, uma boa gestão de saúde pública, você está indo no sentido de criar uma farsa, um estelionato, fazendo as pessoas acreditarem forçadamente em uma mentira, com objetivos que não se sabe quais são. Infelizmente, nesse momento, baseado nos conhecimentos científicos, que foram conquistados até hoje em relação ao coronavírus, não se conseguiu qualquer tratamento que possa retardar ou diminuir a gravidade da doença. Tudo o que se fugir a isso é falso dentro dos melhores preceitos científicos
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